sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Tirem as vossas ilações


Por: Carlos Vamain
 
Como disse um analista, “decididamente, Bissau faz trabalhar a imaginação jurídica”. Um país em que teimosamente se criam factos forçando as normas legais a adequarem-se e a se conformarem aos mesmos, em função de interesses instalados e não em razão da necessidade da existência de uma sociedade regulada em função de normas e da jurisprudência que garantam a segurança e a certeza jurídicas no relacionamento entre as pessoas.

Depois de várias peripécias politicas envolvendo diferentes actores de um mesmo Partido – maior do que o Estado da Guiné-Bissau, cujas brigas e crises internas transbordam sempre para o Estado, a ponto de ainda se confundir com Partido-Estado -, alastrou-se, uma vez mais, envolvendo as instituições públicas do país, nomeadamente, o Parlamento.

Trata-se, como é do conhecimento público, da expulsão de militantes de um Partido politico (PAIGC), que exercem mandato de Deputado na Assembleia Nacional Popular (ANP) e que foram objecto de uma deliberação da Comissão Permanente da ANP, um órgão que funciona no intervalo das sessões da Assembleia Nacional Popular. Essa deliberação declarou a perda de mandato dos quinze Deputados, a requerimento do próprio partido e da sua Bancada Parlamentar, com fundamento no n°. 1, a), do Artigo 8°, do Estatuto de Deputado, afirmando que esses Deputados deixaram de “preencher uma das condições de elegibilidade como deputados.” Exposto isso, coloca-se a questão de saber se esta decisão é ou não legal, à luz do ordenamento jurídico da Guiné-Bissau. Uma situação que nos leva a analisar os pressupostos e as competências legais da autoridade pública encarregue de conhecer e pronunciar-se sobre a matéria relativa à perda de mandato de Deputados.

1.    Os pressupostos legais da perda de mandato à luz da deliberação da Comissão Permanente da ANP

Uma das normas fundamentais para o exercício das funções de Deputado é a imunidade parlamentar, qual seja, a garantia constitucional da sua independência e liberdade de expressão no exercício das suas funções. Neste sentido, o constituinte guineense impõe, no Artigo 82°, da Constituição da República que: “Nenhum deputado pode ser incomodado, perseguido, detido, preso, julgado ou condenado pelos votos e opiniões que emitir no exercício do seu mandato.” Esta protecção normativa específica é consagrada pelo princípio das imunidades parlamentares, que se fundamentam na própria Constituição.

Portanto, o reconhecimento dum estatuto específico impõe contrapartidas, a saber, o mandato do Deputado deve estar ao abrigo de qualquer influência que possa contrariar o livre exercício das suas funções. Em consequência, estão submetidos a algumas obrigações e interdições. Somente em circunstâncias bem delimitadas por lei podem os Deputados ser submetidos a sanções, tais como em caso de prática de crimes em flagrante delito.

No caso em espécie, não compete à Comissão Permanente da ANP decidir em matéria da perda de mandato de Deputados sob pena de prevaricação, usurpação de poderes ou de abuso de poder. Isto porque em Direito Público não se presumem direitos, nem obrigações, em razão do princípio da legalidade dosactos das entidades públicas. No caso em espécie, em nenhum momento os dispositivos constitucionais ou legais atribuem competência à Comissão Permanente da ANP para pronunciar-se sobre a perda de mandato de Deputados.

2.    A autoridade competente para decidir sobre a perda de mandato dos deputados

 A competência para pronunciar-se sobre a perda de mandato de um Deputado pertence ao Plenário da Assembleia Nacional Popular, nos termos do Artigo 13°, n°. 2, do Regimento desta instituição. Pois, o simples facto de o Artigo 49°, b), do Regimento dispor que compete à Comissão Permanente exercer os poderes da ANP relativamente ao mandato dos Deputados não significa de modo algum a competência para pronunciar-se sobre a perda de mandatos.

Neste âmbito, a decisão proferida com fundamento no n°. 1 a), do Artigo 8° do Estatuto dos Deputados para além de incongruente, mostra-se totalmente descontextualizada. Isto porque esta disposição aplica-se tão-só ao momento da verificação dos poderes por ocasião da instalação duma nova legislatura, nos termos do 8° e seguintes, do Regimento da ANP, não colhendo a fundamentação da decisão relativa à perda do mandato constante da deliberação proferida, massim, para a não assunção do mandato no início da legislatura. E a verificação de poderes consiste na apreciação da regularidade formal dos mandatos e na apreciação dos processos de eleição dos Deputados, cujos mandatos sejam impugnados por facto que não tenha sido objecto de decisão judicial com transito em julgado (Artigo 8°, n°. 2, do Regimento da ANP). O que não é o caso.

Toda esta polémica assenta-se no não cumprimento da lei. Isto porque, caso a lei tivesse sido cumrpida,nomeadamente, o disposto no Regimento da ANP, a saber, o Artigo 132°, n°. 4, logo depois de conhecidos os resultados de votação do Programa de Governo, ter-se-ia, em parte, evitado este hiato normalem democracia, mas que devido às fragilidades do país, foi amplificado, a ponto de se transformar num problema “bicudo”, em razão da luta intestina à volta dos recursos escassos do país, quando deviam, serenamente, os actores políticos socorrerem-se de instrumentos jurídicos postos à sua disposição para a solução deste imbróglio jurídico-constitucional sem alaridos: a) o recurso ao Plenário (Artigo 75°, do Regimento da ANP) e b) o recurso ao STJ, enquanto Tribunal Constitucional por acumulação de funções (do Artigo 15, alínea m) do Regimento da ANP).


Em conclusão, o comando legal, neste caso, estando bem patente no Artigo 82°, da Constituição da República, quanto à impossibilidade, nomeadamente, de incomodar ou perseguir um deputado por ter emitido votos no Parlamento que, em conjugação com o disposto no Artigo 8°, igualmente, da Constituição da República, torna ipso facto inexistente a deliberação N°. 1/2016, de 15 de Janeiro, adoptada pela Comissão Permanente.

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